(COM SPOILERS)
“A paciente em questão não tem
tendência ao amor, apenas ao sexo.” (Verônica , falando consigo mesma)
As
ficções de Marcelo Gomes são tão
boas que parecem documentários. Desde que vi seu filme anterior - “Cinemas ,
Aspirinas e Urubus”- fiquei fascinado com a
interpretação naturalista de João
Miguel (que também está no elenco desse novo filme) e com a presença de
alguns personagens , que não sabemos se são atores ou não , mas são arquétipos
de pessoas que você facilmente reconhece na vida , são retratos extremamente
realistas. Não há artificialidade, não percebemos o esforço interpretativo que
um não-ator teria diante de uma câmera nem a técnica de um ator profissional. Em
“Era uma vez, eu Verônica”, mesmo nas passagens menos importantes , como uma cafona
vendedora de caranguejo na praia ou o a expressão sincera de uma dona de
pastelaria circulando pela sua loja , há uma constante preocupação de captar uma
essência de humanidade , de chegar o mais perto possível do verdadeiro. As cenas
de sexo não são acrobáticas nem se disfarçam com recursos sugestivos, expõem a
nudez e o prazer com honestidade. A comovente relação entre Verônica e seu pai não é espalhafatosa nem forçada, é
mostrada nos gestos simples do cotidiano como um café da manhã , uma conversa na
mesa da sala , os cuidados em pentear o cabelo. Tudo é estrondosamente “real”
para um filme que se pressupõe ficção e que carrega no título o peso de um “Era
uma vez”, como se fosse ter uma linha narrativa ou expor um conto de fadas.
Nenhuma dessas expectativas é atendida. Estamos longe de um conto clássico. Estamos
longe de estereótipos ou respostas claras. O que vemos é um vazio arrebatador ,
adornado pelo clima quente de Olinda , pelo Carnaval, pela libido, mas que escancara
a situação à deriva dos tempos atuais, sobretudo dos jovens , perdidos entre as
múltiplas possibilidades de escolha.
Como
base de pesquisa para o roteiro , Marcelo Gomes entrevistou 20 mulheres, entre
25 e 27 anos , que contribuíram com seus
relatos para traçar um panorama da juventude atual , mais livre nas escolhas porém mais competitiva
, individualista e superficial nos relacionamentos. A ideia do filme é colocar
o espectador em convivência com a protagonista, encarando suas dúvidas mais
íntimas , como se a câmera estivesse colada na pele dela , quem sabe dentro de
sua cabeça... Temos o privilégio de ouvir os pensamentos dela em voz off e
acompanhamos o drama dessa mulher recém-formada em medicina , tendo que encarar a rotina de um hospital
público muito diferente dos livros , tendo que encarar a velhice do pai e as
milhões de dúvidas sobre o futuro. É admirável o talento da atriz Hermila Guedes , fazendo as várias “Verônicas”
de uma pessoa só. Temos a médica contida e insegura no hospital, a Verônica
super sexual com o namorado, a Verônica doce e companheira com o pai. Essas
múltiplas identidades que todos exercemos no dia-a-dia se chocam e é inevitável
nos reconhecermos como um ser de múltiplas faces, de maneira que uma imagem
sincera pressupõe o conjunto de máscaras que vestimos , e não eleger uma só e
descambar para o estereótipo. A palavra Verônica
significa verdadeira imagem. O filme é um retrato muito sincero e muito
bonito de uma história trivial, que é a de todos nós. Sem as máscaras o que somos? Só vazio? Meio
desintegrados , sem um cordão umbilical simbólico, que nos ate a certezas e paradigmas claros, ainda sonhamos boiando em nossa melancolia morna . E vamos fazendo frevos felizes com letras depressivas,
vamos amando meio indiferentes , vamos desejando finais felizes um pouco mais
tristes.
“Era
uma vez eu Verônica” ganhou vários prêmios no festival de Brasília , incluindo melhor
trilha sonora , de autoria da cantora Karina Buhr e do vocalista da banda “Profiterólis”, Tomas Alves Souza.
A
função básica da música no filme é caracterizar dois Recifes: Um é o Recife do
pai de Verônica ,dominado pelos frevos antigos : a voz da tradição, do passado folclórico, do que está prestes
a falecer , mas que ainda luta para se manter em movimento, com a organização
meticulosa de seus velhos vinis.Outro é o Recife moderno , eletrônico, caótico e intenso das canções de Karina Buhr.
“Bem vindas”, de
Karina, é a canção-tema do filme. O arranjo riquíssimo permite que ela ganhe
autonomia a ponto de funcionar como música instrumental em algumas passagens.
Mas aparece também cantada em momentos cruciais no fim do filme : quando Verônica olha para o horizonte e deixa o mar bater em seu rosto depois da festa de carnaval , numa expressão que
mistura alegria e tristeza ; na cena em que todos boiam nus no mar e nos créditos finais. Trechos da
letra como “ Essa tarde dourada que traz felicidade pras pessoas normais não me
mente mais” ou “ Meu umbigo envolvido nesse calor , se faz de morto, não sente
nada, só vazio”, são passagens poéticas que
se encaixam muito bem nos dilemas da protagonista . Sem dúvida essa música é uma grande aliada do diretor no desafio de contar uma história triste em plena época de carnaval , na praia . Os arranjos transmitem um clima glacial em meio ao sol
escaldante de Recife.
Outra
música de Karina também é muito importante para o filme: “Mira Ira”. Essa
canção toca pela primeira vez quando Verônica sai pra se divertir com as amigas pra falar de homens
e rir os risos que ela deve rir. Karina Buhr faz uma ponta de atriz , cantando no palco : “Minha mira me era
confusa, mudando meu amor de endereço, fria” . É a música-tema de quem não sabe o que quer ser e se coloca entre os padrões vigentes de personalidade e a angústia. Se a ira , ou a
pulsão de morte erra a mira de nossa Verônica é porque ela canaliza para o sexo
, se o amor perturba, basta mudar de amor , ter um amante , ou trocar o amor
por algo menos problemático , como talvez a placidez de uma afetividade pai e filha. Como Verônica mesmo diz numa das falas em off , ela é uma pessoa que
não é inclinada para o amor. Coincidência ou não, uma música de Karina Buhr ,
que não está no filme, mas que também fala um pouco dessa dificuldade de
desenvolver um sentimento afetivo é “Não me ame tanto” , que num trecho diz:
“Eu tenho algum problema com amor de mais, jogo tudo no lixo”.
De
outro lado , Gustavo (João Miguel) , o
“namorado” de Verônica, quer o tempo todo desenvolver uma relação mais próxima
mas Verônica não está presente o suficiente pra isso. É comovente uma cena em
que ela está dormindo e ele admira a mulher amada ao som da música
incidental “O que me importa”, de Cury. A versão utilizada é a de 1972,
cantada por Tim maia. A interpretação é intimista , de um Tim que não é aquele mais conhecido da voz imponente e das levadas dançantes. É um Tim que canta baixinho , com a voz meio trêmula e num andamento lento. Interessante pensar que é uma outra face do cantor , o que está em plena sintonia com a ideia do filme de explorar a fragmentação da
identidade. Mas essa canção serve para enfatizar um momento de
ternura e dor de alguém que ama e não é amado o suficiente.
Um elemento muito importante é o gravador . Verônica costumava usá-lo para
estudar pacientes no curso de psiquiatria. Depois de formada, ela se despede do
gravador cantando “Frevo de Saudade”,
de Nelson Ferreira. Seu pai , seu "anjo de bondade" , que ouvia um de seus discos na sala , abaixa o
volume para escutar a filha cantar , num
momento em que os dois se alinham no passado. Se nesse momento pai e filha estão caminhando
pela mesma trilha sonora , na verdade os caminhos são opostos. O pai quer
preservar o passado, cultivá-lo, afirmá-lo sobre o presente, por isso precisa ouvir o tempo todo seus discos. Para a filha a função dessa música é de despedida , como uma última lembrança . Ao longo
do filme, Verônica vai gravar análises sobre si mesma no gravador. Sua voz que antes analisava os outros , agora analisa a si mesma. Temos aí uma
metáfora da construção da própria
identidade , de uma voz que fala por si, e nem por isso precisa
negar completamente a tradição do pai.
Mas
nesse processo de construção de si , há as hesitações no pensamento ,
inaudíveis para os outros. A edição mescla a voz off, ou o pensamento de Verônica , com a barulheira
urbana ou com a confusão sonora da sala de espera de um hospital , ou com a
aglomeração de um baile de carnaval , para deixar claro o quão inexpressivo é o pensamento individual diante de um todo. Numa das cenas , Verônica arranha um
violão, cantando baixinho e a edição sonora sufoca aquele momento , com barulho
de obra e carros. Sugere dessa forma que um mergulho em si mesmo requer uma luta contra
o excesso de barulho externo. E que esses barulhos (leia-se influências,
pressões , expectativas) abafam a possibilidade de uma individualização mais
sincera. Afinal, está tudo padronizado, o nosso coração , nosso jeito de amar tem
um jeito, não é nosso não..
Numa
cena, um paciente chega ao consultório da “Doutora Verônica” se recusa a sentar. Hermila brilha, fazendo uma interpretação intencionalmente ruim. Vemos
como Verônica luta para parecer crível no papel de médica . O paciente não hesita em dizer: ‘isso é negocio de estagio né... você
se finge de médica” . O paciente só senta pra se consultar depois que Verônica
ignora por instantes o que se espera de uma médica-padrão e cantarola um trecho
de “Mira Ira”: ”tá tudo padronizado...” . Fica claro naquele momento que Verônica
é um ser humano por trás da capa de médica , e a fera amansa, o ódio do
paciente é domado , a ira errou seu alvo. Ele possivelmente percebe que os dois
não são tão diferentes. Peguemos alguns dos pacientes atendidos por ela , o problema da doente que sente calor e precisa tirar a roupa , é tão diferente do furor sexual que Verônica sente para se aliviar? O problema do doente catatônico por exemplo , é tão diferente da situação do jantar de Verônica
com seu namorado, em que os dois não consegue dizer nada? O silêncio muitas vezes é o que há de mais sincero , é a história de todos nós, nossas lacunas , há muito mais espaço vazio do que preenchido no universo.
Na
segunda parte do filme , o silêncio se torna muito importante, tanto que
barulhos como canetas, papéis ou qualquer background sonoro ganham um peso muito grande. Não há
música de tensão para esses momentos. Basta por exemplo a presença intimidante
de um médico superior folheando seus papéis ou os barulhos de trânsito enquanto Verônica recebe a notícia de que seu pai está com uma doença terminal. Esse
burburinho externo, essa vida que continua independente da nossa , essa “ tarde que passa mansa despreocupada com a gente” é um movimento sobre o qual não temos
controle e que por mais que fiquemos em silêncio ou morramos, ele continua.
Numa
outra cena, Verônica, penteia os cabelos do pai ao som de uma música instrumental
, um plácido piano. Esse momento de companheirismo e suavidade é cortado
violentamente quando a edição de som interrompe
a música e castiga na altura dos barulhos de trânsito, na transição para a cena
seguinte . Verônica tem que oscilar entre momentos tão plenos e o caos. Não há fade in, fade out , não há previsão na vida, ela
simplesmente acontece.
Então Verônica nos mostra seu suposto final feliz , que me parece um pouco
trágico: todos nus insinuando uma orgia na praia e se jogando no mar para
boiarem. Lógico que o sexo é muito importante para a personagem e o filme
trabalha muito bem com isso quando filma as cenas quase que roçando a pele dos atores e a edição de som enfatiza o volume ,
privilegiando gemidos altos e sussurros, o que nos faz quase estar na cama com eles.
Um final que escancara o desejo sexual é sincero , derruba tabus que porventura
ainda existam sobre a intensidade do desejo sexual feminino , e Freud ficaria
orgulhoso. Mas por outro lado será que se lançar de vez nesse desejo não seria
o caminho para ficar num caminho contrário à civilização, no ventre quente de
um mar morno, mas alheio a qualquer tipo de contribuição social? Será que Verônica
existiria se fosse só desejo? Poucos minutos antes do filme acabar ,
ela diz que cansou de tanto sofrer com um semblante muito triste. Somos induzidos a pensar que o fim será
algo como um suicídio , mas de certa forma esse "tentar sonhar mais com a vida" é uma forma de suicídio: mata a
realidade pra viver no sonho. Para que Verônica exista , precisa passar por sucessivas crises ou
mortes, e como diz Vinicius de Morais na letra de Tempo de amor: "Bem melhor seria poder viver em paz, sem ter que sofrer , sem ter que chorar, sem ter que querer, sem ter que se dar, mas tem que sofrer, tem que querer, tem que chorar pra poder amar(...) Não existe coisa mais triste que ter paz (...) o tempo de amor é tempo de dor, o tempo de paz não faz nem desfaz ". E amanhã , todos colocarão suas roupas ,
sairão do mar morno e representarão seus papéis de coadjuvantes, antagonistas,
protagonistas e tudo mais. Era uma vez um filme que começasse em nossas cabeças
e que, se tudo desse certo, terminaria fora delas.
PARA OUVIR ALGUMAS:
Oi, adorei tudo no seu comentario. Obrigada.
ResponderExcluirNesse pedaco
""tentar sonhar mais com a vida" é uma forma de suicídio: mata a realidade pra viver no sonho. "
eu nao concordei com a sua opiniao...
Acho que ela criou eh uma forma de parar de ver o caos, colocar uma cortina transparente nele, para que ele possa ser menos assustador, e partir para a construcao de sua propria cronica, de sua propria estoria, e de sua propria ficcao.
Valeu