quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Era uma vez , eu , Verônica - A trilha sonora

(COM SPOILERS)



“A paciente em questão não tem tendência ao amor, apenas ao sexo.” (Verônica , falando consigo mesma) 

As ficções de Marcelo Gomes são tão boas que parecem documentários. Desde que vi seu filme anterior - “Cinemas , Aspirinas e Urubus”- fiquei fascinado com a  interpretação naturalista de João Miguel (que também está no elenco desse novo filme) e com a presença de alguns personagens , que não sabemos se são atores ou não , mas são arquétipos de pessoas que você facilmente reconhece na vida , são retratos extremamente realistas. Não há artificialidade, não percebemos o esforço interpretativo que um não-ator teria diante de uma câmera nem a técnica de um ator profissional. Em “Era uma vez, eu Verônica”, mesmo nas passagens menos importantes , como uma cafona vendedora de caranguejo na praia ou o a expressão sincera de uma dona de pastelaria circulando pela sua loja , há uma constante preocupação de captar uma essência de humanidade , de chegar o mais perto possível do verdadeiro. As cenas de sexo não são acrobáticas nem se disfarçam com recursos sugestivos, expõem a nudez e o prazer com honestidade. A comovente relação entre Verônica e seu pai não é espalhafatosa nem forçada, é mostrada nos gestos simples do cotidiano como um café da manhã , uma conversa na mesa da sala , os cuidados em pentear o cabelo. Tudo é estrondosamente “real” para um filme que se pressupõe ficção e que carrega no título o peso de um “Era uma vez”, como se fosse ter uma linha narrativa ou expor um conto de fadas. Nenhuma dessas expectativas é atendida. Estamos longe de um conto clássico. Estamos longe de estereótipos ou respostas claras. O que vemos é um vazio arrebatador , adornado pelo clima quente de Olinda , pelo Carnaval, pela libido, mas que escancara a situação à deriva dos tempos atuais, sobretudo dos jovens , perdidos entre as múltiplas possibilidades de escolha.
Como base de pesquisa para o roteiro , Marcelo Gomes entrevistou 20 mulheres, entre 25 e 27 anos , que  contribuíram com seus relatos para traçar um panorama da juventude atual ,  mais livre nas escolhas porém mais competitiva , individualista e superficial nos relacionamentos. A ideia do filme é colocar o espectador em convivência com a protagonista, encarando suas dúvidas mais íntimas , como se a câmera estivesse colada na pele dela , quem sabe dentro de sua cabeça... Temos o privilégio de ouvir os pensamentos dela em voz off e acompanhamos o drama dessa mulher recém-formada em medicina ,  tendo que encarar a rotina de um hospital público muito diferente dos livros , tendo que encarar a velhice do pai e as milhões de dúvidas sobre o futuro. É admirável o talento da atriz Hermila Guedes , fazendo as várias “Verônicas” de uma pessoa só. Temos a médica contida e insegura no hospital, a Verônica super sexual com o namorado, a Verônica doce e companheira com o pai. Essas múltiplas identidades que todos exercemos no dia-a-dia se chocam e é inevitável nos reconhecermos como um ser de múltiplas faces, de maneira que uma imagem sincera pressupõe o conjunto de máscaras que vestimos , e não eleger uma só e descambar para o estereótipo. A palavra Verônica significa verdadeira imagem. O filme é um retrato muito sincero e muito bonito de uma história trivial, que é a de todos nós.  Sem as máscaras o que somos? Só vazio? Meio desintegrados , sem um cordão umbilical simbólico, que nos ate a certezas e paradigmas claros, ainda sonhamos boiando em nossa melancolia morna . E vamos fazendo frevos felizes com letras depressivas, vamos amando meio indiferentes , vamos desejando finais felizes um pouco mais tristes.


“Era uma vez eu Verônica” ganhou vários prêmios no festival de Brasília , incluindo melhor trilha sonora , de autoria da cantora  Karina Buhr  e do vocalista da banda  “Profiterólis”, Tomas Alves Souza.
A função básica da música no filme é caracterizar dois Recifes: Um é o Recife do pai de Verônica ,dominado pelos frevos antigos : a voz da tradição, do passado folclórico, do que está prestes a falecer , mas que ainda luta para se manter em movimento, com a organização meticulosa de seus velhos vinis.Outro é o Recife moderno , eletrônico, caótico e intenso das canções de Karina Buhr.
“Bem vindas”, de Karina, é a canção-tema do filme. O arranjo riquíssimo permite que ela ganhe autonomia a ponto de funcionar como música instrumental em algumas passagens. Mas aparece também cantada em momentos cruciais no fim do filme : quando Verônica olha para o horizonte e deixa o mar bater em seu rosto  depois da festa de carnaval , numa expressão que mistura alegria e tristeza  ;  na cena em que todos boiam nus no mar e nos créditos finais. Trechos da letra como “ Essa tarde dourada que traz felicidade pras pessoas normais não me mente mais” ou “ Meu umbigo envolvido nesse calor , se faz de morto, não sente nada, só vazio”,  são passagens poéticas que se encaixam muito bem nos dilemas da protagonista . Sem dúvida essa música é uma grande aliada do diretor no desafio de contar uma história triste em plena época de carnaval , na praia . Os arranjos  transmitem um clima glacial em meio ao sol escaldante de Recife.


Outra música de Karina também é muito importante para o filme: “Mira Ira”. Essa canção toca pela primeira vez quando Verônica sai pra se divertir com as amigas pra falar de homens e rir os risos que ela deve rir. Karina Buhr faz uma ponta de atriz ,  cantando no palco : “Minha mira me era confusa, mudando meu amor de endereço, fria” . É a  música-tema de quem não sabe o que quer ser e se coloca entre os padrões vigentes de personalidade e a angústia. Se a ira , ou a pulsão de morte erra a mira de nossa Verônica é porque ela canaliza para o sexo , se o amor perturba, basta mudar de amor , ter um amante , ou trocar o amor por algo menos problemático , como talvez a placidez de uma afetividade pai e filha. Como Verônica mesmo diz numa das falas em off , ela é uma pessoa que não é inclinada para o amor. Coincidência ou não, uma música de Karina Buhr , que não está no filme, mas que também fala um pouco dessa dificuldade de desenvolver um sentimento afetivo é “Não me ame tanto” , que num trecho diz: “Eu tenho algum problema com amor de mais, jogo tudo no lixo”.
De outro lado , Gustavo (João Miguel) , o “namorado” de Verônica, quer o tempo todo desenvolver uma relação mais próxima mas Verônica não está presente o suficiente pra isso. É comovente uma cena em que ela está dormindo e ele admira a mulher amada ao som da música incidental “O que me importa”, de Cury. A versão utilizada é a de 1972, cantada por Tim maiaA interpretação é intimista , de um Tim  que não é aquele mais conhecido da voz imponente e das levadas dançantes. É um Tim que canta baixinho , com a  voz meio trêmula e num andamento lento. Interessante pensar que é uma outra face do cantor , o  que está em plena sintonia com a  ideia do filme de explorar a fragmentação da identidade. Mas essa canção serve  para enfatizar um momento de ternura e dor de alguém que ama e não é amado o suficiente.


 Um elemento muito importante é o gravador . Verônica costumava usá-lo para estudar pacientes no curso de psiquiatria. Depois de formada, ela se despede do gravador cantando “Frevo de Saudade”, de Nelson Ferreira. Seu pai , seu "anjo de bondade" , que ouvia um de seus discos na sala , abaixa o volume para escutar a filha cantar ,  num momento em que os dois se alinham no passado. Se nesse momento pai e filha estão caminhando pela mesma trilha sonora , na verdade os caminhos são opostos. O pai quer preservar o passado, cultivá-lo, afirmá-lo sobre o presente, por isso precisa ouvir o tempo todo seus discos. Para a filha a função dessa música é de despedida , como uma última lembrança . Ao longo do filme, Verônica vai gravar análises sobre si mesma no gravador. Sua voz que antes  analisava os outros , agora analisa a si mesma. Temos aí  uma metáfora da construção da própria  identidade , de uma voz que fala por si, e nem por isso precisa negar  completamente a tradição do pai.
Mas nesse processo de construção de si , há as hesitações no pensamento , inaudíveis para os outros. A edição mescla a voz off, ou o pensamento de Verônica ,  com a barulheira urbana ou com a confusão sonora da sala de espera de um hospital , ou com a aglomeração de um baile de carnaval , para deixar claro o quão inexpressivo é o pensamento individual diante de um todo. Numa das cenas , Verônica arranha um violão, cantando baixinho e a edição sonora sufoca aquele momento , com barulho de obra e carros. Sugere dessa forma que  um mergulho em si mesmo requer uma luta contra o excesso de barulho externo. E que esses barulhos (leia-se influências, pressões , expectativas) abafam a possibilidade de uma individualização mais sincera. Afinal, está tudo padronizado, o nosso coração , nosso jeito de amar tem um jeito, não é nosso não..
Numa cena, um paciente chega ao consultório da “Doutora Verônica” se recusa a  sentar. Hermila brilha, fazendo uma interpretação intencionalmente ruim. Vemos como Verônica luta para parecer crível no papel de médica . O paciente não hesita em dizer: ‘isso é negocio de estagio né... você se finge de médica” . O paciente só senta pra se consultar depois que Verônica ignora por instantes o que se espera de uma médica-padrão e cantarola um trecho de “Mira Ira”: ”tá tudo padronizado...” . Fica claro naquele momento que Verônica é um ser humano por trás da capa de médica , e a fera amansa, o ódio do paciente é domado , a ira errou seu alvo. Ele possivelmente percebe que os dois não são tão diferentes. Peguemos alguns dos pacientes atendidos por ela ,  o problema da doente que sente calor e precisa tirar a roupa , é tão diferente do furor sexual que Verônica sente para se aliviar? O problema do doente catatônico por exemplo , é tão diferente da situação do jantar de Verônica com seu namorado, em que os dois não consegue dizer nada? O silêncio muitas vezes é o que há de mais sincero , é a história de todos nós,  nossas lacunas , há muito mais espaço vazio do que preenchido no universo.


Na segunda parte do filme , o silêncio se torna muito importante, tanto que barulhos como canetas, papéis ou qualquer background  sonoro ganham um peso muito grande. Não há música de tensão para esses momentos. Basta por exemplo a presença intimidante de um médico superior folheando seus papéis ou  os barulhos de trânsito enquanto Verônica recebe a notícia de que seu pai está com uma doença terminal. Esse burburinho externo, essa vida que continua independente da nossa , essa “ tarde que passa mansa despreocupada com a  gente” é um movimento sobre o qual não temos controle e que por mais que fiquemos em silêncio ou morramos, ele continua.
Numa outra cena, Verônica, penteia os cabelos do pai ao som de uma música instrumental , um plácido piano. Esse momento de companheirismo e suavidade é cortado violentamente  quando a edição de som interrompe a música e castiga na altura dos barulhos de trânsito,  na transição para a cena seguinte . Verônica tem que oscilar entre momentos tão plenos e o caos. Não há  fade in, fade out , não há previsão na vida, ela simplesmente acontece.
Então Verônica nos mostra seu suposto final feliz , que me parece um pouco trágico: todos nus insinuando uma orgia na praia e se jogando no mar para boiarem. Lógico que o sexo é muito importante para a personagem e o filme trabalha muito bem com isso quando filma as cenas quase que roçando a  pele dos atores e a edição de som enfatiza o volume , privilegiando gemidos altos e sussurros, o que nos faz quase estar na cama com eles. Um final que escancara o desejo sexual é sincero , derruba tabus que porventura ainda existam sobre a intensidade do desejo sexual feminino , e Freud ficaria orgulhoso. Mas por outro lado será que se lançar de vez  nesse desejo não seria o caminho para ficar num caminho contrário à civilização, no ventre quente de um mar morno, mas alheio a qualquer tipo de contribuição social? Será que Verônica existiria se  fosse só desejo? Poucos minutos antes do filme acabar , ela diz que cansou de tanto sofrer com um semblante muito triste. Somos induzidos a pensar que o fim será algo como um suicídio , mas de certa forma esse "tentar sonhar mais com a  vida" é uma forma de suicídio:  mata a realidade pra viver no sonho. Para que Verônica exista , precisa passar por sucessivas crises ou mortes, e como diz Vinicius de Morais na letra de Tempo de amor: "Bem melhor seria poder viver em paz, sem ter que sofrer , sem ter que chorar, sem ter que querer, sem ter que se dar, mas tem que sofrer, tem que querer, tem que chorar pra poder amar(...) Não existe coisa mais triste que ter paz (...) o tempo de amor é tempo de dor, o tempo de paz não faz nem desfaz ". E amanhã , todos colocarão suas roupas , sairão do mar morno e representarão seus papéis de coadjuvantes, antagonistas, protagonistas e tudo mais. Era uma vez um filme que começasse em nossas cabeças e que, se tudo desse certo, terminaria fora delas.

PARA OUVIR ALGUMAS:







Um comentário:

  1. Oi, adorei tudo no seu comentario. Obrigada.
    Nesse pedaco
    ""tentar sonhar mais com a vida" é uma forma de suicídio: mata a realidade pra viver no sonho. "
    eu nao concordei com a sua opiniao...
    Acho que ela criou eh uma forma de parar de ver o caos, colocar uma cortina transparente nele, para que ele possa ser menos assustador, e partir para a construcao de sua propria cronica, de sua propria estoria, e de sua propria ficcao.
    Valeu

    ResponderExcluir