Um dos sinais de que fim
de ano está chegando é quando você começa a ouvir: “Hoje é o novo dia de um novo tempo que
começou (...)”. Sorria! É o momento das pessoas fingirem que tudo vai mudar de um dia pro
outro , fazerem seus planos que não serão cumpridos e entrarem numa onda mágica
de união, amor , abraços , paz e panetones. Nada mais simbólico que o artifício dos fogos , embelezando o céu com
sua pirotecnia colorida , explodindo esperanças fugazes. Algumas horas depois lá estão os garis varrendo as velas e flores que Yemanjá não recolheu. Mas “um novo tempo” que se repete a cada ano não poderia ser algo tão novo assim. E não é...
A história começou em
1971 , em plena ditadura militar brasileira. Enquanto o presidente Médici fuzilava a galera em seus “anos de chumbo” ; Boni , então diretor da Tv Globo , teve a ideia de fazer uma vinheta de natal otimista e esperançosa. A música foi composta por Marcos Valle e a letra é de Nelson Motta e Paulo Sérgio Valle. Os 3 compuseram a partir da sugestão de Boni , de fazer algo sofisticado, mas ao mesmo tempo popular , para que fosse cantado de maneira intuitiva pelo elenco da Globo. A princípio iria ser veiculada só naquele ano. Ninguém imaginava que
a canção tomaria essa proporção toda a ponto de se tornar um símbolo de fim de ano , chegando a migrar
da programação da TV para diversas festas e inclusive para o famoso Réveillon da
praia de Copacabana, no Rio. Todos conhecem e todos cantam. Mas por que será
que pegou tanto?
A repetição
exaustiva é uma ótima estratégia para grudar algo na cabeça. Mas além disso ,
há elementos que favorecem uma maior aceitação e envolvimento
coletivos . Proponho alguns deles:
1)
Letra confortante , que fala o que todos querem ouvir
Olha que beleza , o cast da Globo está cantando com toda aquela felicidade,
e as alegrias não são só deles, “serão de todos, é só querer”. Basta eu querer
para ser tão feliz como o pessoal da televisão parece ser , não preciso me
esforçar pra isso. Em outra parte temos: “Todos nossos sonhos serão verdade”-
Não é 1 ou 2 não, são todos ! Que maravilha! Meus desejos se tornam reais
num passe de mágica . O gênio da lâmpada oferecia 3 , a Globo oferece
todos! No refrão temos um clima mágico de união : “a
festa é sua, a festa nossa” . A festa é de quem embarcar nessa onda
muito louca. E vamos nós , massagear nossos cérebros nesse dia !
2)
Características da harmonia
A canção não começa a ser cantada no I
grau da escala harmônica , onde seria o ponto de partida convencional. Dessa forma um
estranhamento sutil é sugerido, dando uma sensação de “novidade” , ou de ano novo.
Além disso em algumas passagens há a chamada cadência plagal , uma variação
entre os graus I e IV da escala harmônica que confere uma sensação
de placidez. No trecho: “Todos nossos sonhos serão verdade”, ocorre uma mudança de tom justamente na
palavra “sonhos” , abrindo-se uma nova realidade , justo num momento
do ano em que os sonhos de todo mundo estão à flor da pele. Já o refrão da música parece deslizar de tanta naturalidade , além de ser bastante curto , o que facilita a
memorização e torna a continuidade
possivelmente infinita , a critério do arranjo que se faça pra a música.
3) A força da
tradição
O fato de todos cantarem juntos e saberem a letra de cor, dá uma
sensação de integração muito forte , como acontece em hinos de torcida
organizada ou cultos religiosos. Quando várias pessoas repetem a mesma coisa , as diferenças se esvaem e
parece que todos somos um só. Esse feeling de pertencimento , ou “instinto de
rebanho”, ou “sentimento oceânico”,
torna as coisas mais leves, parece que está tudo nos seus devidos
lugares , pois não há fluxo contrário ou um ruído que prejudique a coesão. Como
essa época é muito associada à religião e à família por conta do simbolismo do
Natal , a ideia de ter uma grande
família , a “família humanidade “ , é algo que conforta os guardiões da
tradição.
Ano Passado a vinheta foi ao ar na voz de Roberto Carlos, que
acompanhou o cast da Globo, cantando num estúdio fechado. A edição mesclava
também uma encenação com personalidades
da emissora vestidas de povo , como o Bonner de carteiro, o
Serginho Groisman vendendo picolé , ou Faustão de Garçom. O mais engraçado é
que assim que Roberto Carlos começa a cantar numa TV , na sala de uma casa de família, as
crianças saem correndo para fora de casa super contentes. O clima era mais
intimista , por causa das situações de família e pelo próprio espaço reduzido
das cenas em estúdio.
Este ano, o próprio pessoal dos
bastidores da emissora cumpre a função de aproximação com o público , ao
aparecem na vinheta também. Todas as 5 versões da vinheta começam com um
sujeito que remete a classes mais baixas: costureiras , jardineiros,
trabalhadores com crachás etc. É um deles que puxa a música , só depois o elenco
aparece.
Qualquer coisa que faz parte do início tem um valor intrínseco , é a primeira informação, a referência para o que vem adiante. Dar esse peso a pessoas não conhecidas é uma novidade considerável , mas é preciso lembrar que independente de um possível humanismo e integração , não podemos esquecer a questão do aumento do poder aquisitivo da classe C no Brasil, um mercado promissor e numeroso. Diversas mídias têm se voltado para esse novo público , que corresponde a uma grande parcela de audiência, sobretudo da Tv Globo.
Qualquer coisa que faz parte do início tem um valor intrínseco , é a primeira informação, a referência para o que vem adiante. Dar esse peso a pessoas não conhecidas é uma novidade considerável , mas é preciso lembrar que independente de um possível humanismo e integração , não podemos esquecer a questão do aumento do poder aquisitivo da classe C no Brasil, um mercado promissor e numeroso. Diversas mídias têm se voltado para esse novo público , que corresponde a uma grande parcela de audiência, sobretudo da Tv Globo.
Quanto ao arranjo da música, neste ano há algumas inovações. Ela começa
à capela , cantada por uma dessas pessoas dos bastidores , depois entra uma
batida de axé da primeira parte até o refrão. No trecho”sonhos
serão verdades” , uma harpa faz uma varredura em várias notas , naquele efeito
típico que dá uma ideia de fantasia. No último verso antes do refrão (“O
futuro já começou”) a música dá uma
parada e muda de estilo: vira um
remix eletrônico , justamente para brincar com a noção do futuro chegando. O baixo faz notas
curtas num ritmo swingado, acompanhado de efeitos sonoros e bateria eletrônica.
Repete a primeira parte novamente e quando chega em o” futuro já
começou”, há um rufar de tambores e pratos , para dar um ar de expectativa . O
andamento é reduzido , fazendo a música se expandir num clímax lento , com
direito a alguns sinos pra temperar o clima natalino.
Este ano a exclusividade das vinhetas não se restringiu à Globo, outras emissoras também exploraram a ideia. A Record distribuiu câmeras
para os apresentadores filmarem os bastidores , aproveitando o gosto popular pelos reality shows.
O cast da emissora abre presentes e conversa com o público ao som do tema “Do
jeito que o povo gosta”. Diferentemente
da superprodução luxuosa da Globo , o ar é caseiro, buscando transmitir uma proximidade estilo youtube.
Acabou não ficando muito animada, há um clima mais tradicional, o que tem até a ver com a
imagem da emissora. Já o SBT fez uma versão do hit “Gangnam Style”. O resultado ficou interessante , com direito a um boneco de
animação do Silvio Santos fazendo piruetas e um efeito de multiplicação da
Super Nany. O trabalho tem a cara da emissora, não só pelo fato de fazer versão
de uma coisa já existente (vide a
enxurrada de novelas e seriados importados e as versões desses seriados em
português) , como também de trazer a descontração e alegria , que Silvio Santos sustenta ao longo de tantos
anos na TV , conseguindo fazer de seu programa de domingo um sucesso até hoje. O
mérito dessa vinheta é passar uma naturalidade e uma aparente sinceridade , que
já não é tão evidente na da Globo.
Mas não podemos negar que em
termos de música, a Globo conseguiu criar uma referência, que fica no
inconsciente de todos nessa época, independente de versões. A canção já traz
consigo uma carga afetiva de anos e anos reafirmada e tendemos a acolher
melhor aquilo que conhecemos. Outro ponto importante é que as músicas da Record
e do SBT citam o nome das respectivas emissoras. A da Globo não , o que torna a
música mais genérica , pronta para ser cantada por qualquer um em diversas
ocasiões. Gostemos dela ou não , temos que admitir que já faz parte da história
dos brasileiros e de nossos velhos anos
novos.
PARA OUVIR UM POUCO :