quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

"Um Novo Tempo" - A vinheta de fim de ano da Globo


Um dos sinais de que fim de ano está chegando é quando você começa a ouvir:  “Hoje é o novo dia de um novo tempo que começou (...)”. Sorria! É o momento das pessoas fingirem que tudo vai mudar de um dia pro outro , fazerem seus planos que não serão cumpridos e entrarem numa onda mágica de união, amor , abraços , paz e panetones. Nada mais simbólico que o artifício dos fogos , embelezando o céu com sua pirotecnia colorida , explodindo esperanças fugazes. Algumas horas depois lá estão os garis varrendo as velas e flores que Yemanjá não recolheu. Mas “um novo tempo” que se repete a cada ano não poderia  ser algo tão novo assim. E não é...
A história começou em 1971 , em plena ditadura militar brasileira. Enquanto o presidente Médici fuzilava a galera em seus “anos de chumbo” ; Boni , então diretor da Tv Globo , teve a ideia de fazer uma vinheta de natal otimista e esperançosa. A música foi composta por Marcos Valle e a letra é de Nelson Motta e Paulo Sérgio Valle. Os 3 compuseram a partir da sugestão de Boni , de fazer algo sofisticado, mas ao mesmo tempo popular , para que fosse cantado de maneira intuitiva pelo elenco da Globo. A princípio iria ser  veiculada só naquele ano. Ninguém imaginava que a canção tomaria essa proporção toda a ponto de  se tornar um símbolo de fim de ano , chegando a migrar da programação da TV para diversas festas e inclusive para o famoso Réveillon da praia de Copacabana, no Rio. Todos conhecem e todos cantam. Mas por que será que pegou tanto?
A repetição exaustiva  é uma ótima estratégia para grudar algo na cabeça. Mas além disso , há elementos que favorecem uma maior aceitação e envolvimento coletivos . Proponho alguns deles:

1)      Letra confortante , que fala o que todos querem ouvir
Olha que beleza , o cast da Globo está cantando com toda aquela felicidade, e as alegrias não são só deles, “serão de todos, é só querer”. Basta eu querer para ser tão feliz como o pessoal da televisão parece ser , não preciso me esforçar pra isso. Em outra parte temos: “Todos nossos sonhos serão verdade”- Não é 1 ou 2  não, são todos !  Que maravilha! Meus desejos se tornam reais num passe de mágica . O gênio da lâmpada oferecia 3 , a Globo oferece todos!  No  refrão temos um clima mágico de união : “a festa é sua, a festa nossa” . A festa é de quem embarcar nessa onda muito louca. E vamos  nós ,  massagear nossos cérebros nesse dia !

2)      Características da harmonia
    A canção não começa a ser cantada no I grau da escala harmônica , onde seria o ponto de partida convencional. Dessa forma um  estranhamento  sutil  é sugerido, dando uma sensação de “novidade” , ou de ano novo. Além disso em algumas passagens há a chamada cadência plagal , uma variação entre os graus I e IV da escala harmônica que confere uma sensação de placidez. No trecho: “Todos nossos sonhos serão verdade”,  ocorre uma mudança de tom justamente na palavra “sonhos” , abrindo-se  uma nova realidade , justo num momento do ano em que os sonhos de todo mundo estão à flor da pele. Já o  refrão da música parece deslizar  de tanta naturalidade , além de ser bastante curto , o que facilita a memorização e  torna a continuidade possivelmente infinita , a critério do arranjo que se faça pra a música.

3)  A força da tradição
O fato de todos cantarem juntos e saberem a letra de cor, dá uma sensação de integração muito forte , como acontece em hinos de torcida organizada ou cultos religiosos. Quando várias pessoas repetem a  mesma coisa , as diferenças se esvaem e parece que todos somos um só. Esse feeling de pertencimento , ou “instinto de rebanho”, ou “sentimento oceânico”,  torna as coisas mais leves, parece que está tudo nos seus devidos lugares , pois não há fluxo contrário ou um ruído que prejudique a coesão. Como essa época é muito associada à religião e à família por conta do simbolismo do Natal , a ideia de ter uma  grande família , a “família humanidade “ , é algo que conforta os guardiões da tradição.

Ano Passado a vinheta foi ao ar na voz de Roberto Carlos, que acompanhou o cast da Globo, cantando num estúdio fechado. A edição mesclava também uma encenação com  personalidades da emissora  vestidas de povo , como o Bonner de carteiro, o Serginho Groisman vendendo picolé , ou Faustão de Garçom. O mais engraçado é que assim que Roberto Carlos começa a cantar numa TV , na sala de uma casa de família, as crianças saem correndo para fora de casa super contentes. O clima era mais intimista , por causa das situações de família e pelo próprio espaço reduzido das cenas em estúdio.
Este ano, o próprio pessoal dos bastidores da emissora cumpre a função de aproximação com o público , ao aparecem na vinheta também. Todas as 5 versões da vinheta começam com um sujeito que remete a classes mais baixas: costureiras , jardineiros, trabalhadores com crachás etc. É um deles que puxa a música , só depois o elenco aparece. 
Qualquer coisa que  faz parte do início tem um valor intrínseco , é a primeira informação, a referência para o que vem adiante. Dar esse peso a pessoas não conhecidas é uma novidade considerável , mas é preciso lembrar que independente de um possível humanismo e integração , não podemos esquecer a questão do aumento do poder  aquisitivo da classe C no Brasil, um mercado promissor e numeroso. Diversas mídias têm se voltado para esse novo público , que corresponde a uma grande parcela de audiência, sobretudo da Tv Globo.
Quanto ao arranjo da música, neste ano há algumas inovações. Ela começa à capela , cantada por uma dessas pessoas dos bastidores , depois entra uma batida de axé da primeira parte  até o refrão. No trecho”sonhos serão verdades” , uma harpa faz uma varredura em várias notas , naquele efeito típico que dá uma ideia de fantasia. No último verso antes do refrão (“O futuro já começou”) a música dá uma  parada e muda de  estilo: vira um remix eletrônico , justamente para brincar com a  noção do futuro chegando. O baixo faz notas curtas num ritmo swingado, acompanhado de efeitos sonoros e bateria eletrônica. Repete a primeira parte  novamente  e quando chega em o” futuro já começou”, há um rufar de tambores e pratos , para dar um ar de expectativa . O andamento é reduzido , fazendo a música se expandir num clímax lento , com direito a alguns sinos pra temperar o clima natalino.
Este ano a exclusividade das vinhetas não se restringiu à Globo, outras emissoras também exploraram a ideia. A Record distribuiu câmeras para os apresentadores filmarem os bastidores , aproveitando o gosto popular pelos reality shows. O cast da emissora abre presentes e conversa com o público ao som do tema “Do jeito que o povo gosta”. Diferentemente  da superprodução  luxuosa da Globo , o ar é caseiro, buscando transmitir uma  proximidade estilo youtube. Acabou não ficando muito animada, há um clima mais tradicional, o que tem  até a  ver com a  imagem da emissora. Já o SBT fez uma versão do hit “Gangnam Style”. O resultado ficou interessante , com direito a um boneco de animação do Silvio Santos fazendo piruetas e um efeito de multiplicação da Super Nany. O trabalho tem a cara da emissora, não só pelo fato de fazer versão de uma coisa já existente (vide  a enxurrada de novelas e seriados importados e as versões desses seriados em português) , como também de trazer a descontração e alegria , que Silvio Santos sustenta ao longo de tantos anos na TV , conseguindo fazer de seu programa de domingo um sucesso até hoje. O mérito dessa vinheta é passar uma naturalidade e uma aparente sinceridade , que já não é tão evidente na da Globo.
Mas não podemos negar que em termos de música, a Globo conseguiu criar uma referência, que fica no inconsciente de todos nessa época, independente de versões. A canção já traz consigo uma carga afetiva de anos e anos reafirmada  e tendemos a acolher melhor aquilo que conhecemos. Outro ponto importante é que as músicas da Record e do SBT citam o nome das respectivas emissoras. A da Globo não , o que torna a música mais genérica , pronta para ser cantada por qualquer um em diversas ocasiões. Gostemos dela ou não , temos que admitir que já faz parte da história dos brasileiros e de  nossos velhos anos novos.

PARA OUVIR UM POUCO :






quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Era uma vez , eu , Verônica - A trilha sonora

(COM SPOILERS)



“A paciente em questão não tem tendência ao amor, apenas ao sexo.” (Verônica , falando consigo mesma) 

As ficções de Marcelo Gomes são tão boas que parecem documentários. Desde que vi seu filme anterior - “Cinemas , Aspirinas e Urubus”- fiquei fascinado com a  interpretação naturalista de João Miguel (que também está no elenco desse novo filme) e com a presença de alguns personagens , que não sabemos se são atores ou não , mas são arquétipos de pessoas que você facilmente reconhece na vida , são retratos extremamente realistas. Não há artificialidade, não percebemos o esforço interpretativo que um não-ator teria diante de uma câmera nem a técnica de um ator profissional. Em “Era uma vez, eu Verônica”, mesmo nas passagens menos importantes , como uma cafona vendedora de caranguejo na praia ou o a expressão sincera de uma dona de pastelaria circulando pela sua loja , há uma constante preocupação de captar uma essência de humanidade , de chegar o mais perto possível do verdadeiro. As cenas de sexo não são acrobáticas nem se disfarçam com recursos sugestivos, expõem a nudez e o prazer com honestidade. A comovente relação entre Verônica e seu pai não é espalhafatosa nem forçada, é mostrada nos gestos simples do cotidiano como um café da manhã , uma conversa na mesa da sala , os cuidados em pentear o cabelo. Tudo é estrondosamente “real” para um filme que se pressupõe ficção e que carrega no título o peso de um “Era uma vez”, como se fosse ter uma linha narrativa ou expor um conto de fadas. Nenhuma dessas expectativas é atendida. Estamos longe de um conto clássico. Estamos longe de estereótipos ou respostas claras. O que vemos é um vazio arrebatador , adornado pelo clima quente de Olinda , pelo Carnaval, pela libido, mas que escancara a situação à deriva dos tempos atuais, sobretudo dos jovens , perdidos entre as múltiplas possibilidades de escolha.
Como base de pesquisa para o roteiro , Marcelo Gomes entrevistou 20 mulheres, entre 25 e 27 anos , que  contribuíram com seus relatos para traçar um panorama da juventude atual ,  mais livre nas escolhas porém mais competitiva , individualista e superficial nos relacionamentos. A ideia do filme é colocar o espectador em convivência com a protagonista, encarando suas dúvidas mais íntimas , como se a câmera estivesse colada na pele dela , quem sabe dentro de sua cabeça... Temos o privilégio de ouvir os pensamentos dela em voz off e acompanhamos o drama dessa mulher recém-formada em medicina ,  tendo que encarar a rotina de um hospital público muito diferente dos livros , tendo que encarar a velhice do pai e as milhões de dúvidas sobre o futuro. É admirável o talento da atriz Hermila Guedes , fazendo as várias “Verônicas” de uma pessoa só. Temos a médica contida e insegura no hospital, a Verônica super sexual com o namorado, a Verônica doce e companheira com o pai. Essas múltiplas identidades que todos exercemos no dia-a-dia se chocam e é inevitável nos reconhecermos como um ser de múltiplas faces, de maneira que uma imagem sincera pressupõe o conjunto de máscaras que vestimos , e não eleger uma só e descambar para o estereótipo. A palavra Verônica significa verdadeira imagem. O filme é um retrato muito sincero e muito bonito de uma história trivial, que é a de todos nós.  Sem as máscaras o que somos? Só vazio? Meio desintegrados , sem um cordão umbilical simbólico, que nos ate a certezas e paradigmas claros, ainda sonhamos boiando em nossa melancolia morna . E vamos fazendo frevos felizes com letras depressivas, vamos amando meio indiferentes , vamos desejando finais felizes um pouco mais tristes.


“Era uma vez eu Verônica” ganhou vários prêmios no festival de Brasília , incluindo melhor trilha sonora , de autoria da cantora  Karina Buhr  e do vocalista da banda  “Profiterólis”, Tomas Alves Souza.
A função básica da música no filme é caracterizar dois Recifes: Um é o Recife do pai de Verônica ,dominado pelos frevos antigos : a voz da tradição, do passado folclórico, do que está prestes a falecer , mas que ainda luta para se manter em movimento, com a organização meticulosa de seus velhos vinis.Outro é o Recife moderno , eletrônico, caótico e intenso das canções de Karina Buhr.
“Bem vindas”, de Karina, é a canção-tema do filme. O arranjo riquíssimo permite que ela ganhe autonomia a ponto de funcionar como música instrumental em algumas passagens. Mas aparece também cantada em momentos cruciais no fim do filme : quando Verônica olha para o horizonte e deixa o mar bater em seu rosto  depois da festa de carnaval , numa expressão que mistura alegria e tristeza  ;  na cena em que todos boiam nus no mar e nos créditos finais. Trechos da letra como “ Essa tarde dourada que traz felicidade pras pessoas normais não me mente mais” ou “ Meu umbigo envolvido nesse calor , se faz de morto, não sente nada, só vazio”,  são passagens poéticas que se encaixam muito bem nos dilemas da protagonista . Sem dúvida essa música é uma grande aliada do diretor no desafio de contar uma história triste em plena época de carnaval , na praia . Os arranjos  transmitem um clima glacial em meio ao sol escaldante de Recife.


Outra música de Karina também é muito importante para o filme: “Mira Ira”. Essa canção toca pela primeira vez quando Verônica sai pra se divertir com as amigas pra falar de homens e rir os risos que ela deve rir. Karina Buhr faz uma ponta de atriz ,  cantando no palco : “Minha mira me era confusa, mudando meu amor de endereço, fria” . É a  música-tema de quem não sabe o que quer ser e se coloca entre os padrões vigentes de personalidade e a angústia. Se a ira , ou a pulsão de morte erra a mira de nossa Verônica é porque ela canaliza para o sexo , se o amor perturba, basta mudar de amor , ter um amante , ou trocar o amor por algo menos problemático , como talvez a placidez de uma afetividade pai e filha. Como Verônica mesmo diz numa das falas em off , ela é uma pessoa que não é inclinada para o amor. Coincidência ou não, uma música de Karina Buhr , que não está no filme, mas que também fala um pouco dessa dificuldade de desenvolver um sentimento afetivo é “Não me ame tanto” , que num trecho diz: “Eu tenho algum problema com amor de mais, jogo tudo no lixo”.
De outro lado , Gustavo (João Miguel) , o “namorado” de Verônica, quer o tempo todo desenvolver uma relação mais próxima mas Verônica não está presente o suficiente pra isso. É comovente uma cena em que ela está dormindo e ele admira a mulher amada ao som da música incidental “O que me importa”, de Cury. A versão utilizada é a de 1972, cantada por Tim maiaA interpretação é intimista , de um Tim  que não é aquele mais conhecido da voz imponente e das levadas dançantes. É um Tim que canta baixinho , com a  voz meio trêmula e num andamento lento. Interessante pensar que é uma outra face do cantor , o  que está em plena sintonia com a  ideia do filme de explorar a fragmentação da identidade. Mas essa canção serve  para enfatizar um momento de ternura e dor de alguém que ama e não é amado o suficiente.


 Um elemento muito importante é o gravador . Verônica costumava usá-lo para estudar pacientes no curso de psiquiatria. Depois de formada, ela se despede do gravador cantando “Frevo de Saudade”, de Nelson Ferreira. Seu pai , seu "anjo de bondade" , que ouvia um de seus discos na sala , abaixa o volume para escutar a filha cantar ,  num momento em que os dois se alinham no passado. Se nesse momento pai e filha estão caminhando pela mesma trilha sonora , na verdade os caminhos são opostos. O pai quer preservar o passado, cultivá-lo, afirmá-lo sobre o presente, por isso precisa ouvir o tempo todo seus discos. Para a filha a função dessa música é de despedida , como uma última lembrança . Ao longo do filme, Verônica vai gravar análises sobre si mesma no gravador. Sua voz que antes  analisava os outros , agora analisa a si mesma. Temos aí  uma metáfora da construção da própria  identidade , de uma voz que fala por si, e nem por isso precisa negar  completamente a tradição do pai.
Mas nesse processo de construção de si , há as hesitações no pensamento , inaudíveis para os outros. A edição mescla a voz off, ou o pensamento de Verônica ,  com a barulheira urbana ou com a confusão sonora da sala de espera de um hospital , ou com a aglomeração de um baile de carnaval , para deixar claro o quão inexpressivo é o pensamento individual diante de um todo. Numa das cenas , Verônica arranha um violão, cantando baixinho e a edição sonora sufoca aquele momento , com barulho de obra e carros. Sugere dessa forma que  um mergulho em si mesmo requer uma luta contra o excesso de barulho externo. E que esses barulhos (leia-se influências, pressões , expectativas) abafam a possibilidade de uma individualização mais sincera. Afinal, está tudo padronizado, o nosso coração , nosso jeito de amar tem um jeito, não é nosso não..
Numa cena, um paciente chega ao consultório da “Doutora Verônica” se recusa a  sentar. Hermila brilha, fazendo uma interpretação intencionalmente ruim. Vemos como Verônica luta para parecer crível no papel de médica . O paciente não hesita em dizer: ‘isso é negocio de estagio né... você se finge de médica” . O paciente só senta pra se consultar depois que Verônica ignora por instantes o que se espera de uma médica-padrão e cantarola um trecho de “Mira Ira”: ”tá tudo padronizado...” . Fica claro naquele momento que Verônica é um ser humano por trás da capa de médica , e a fera amansa, o ódio do paciente é domado , a ira errou seu alvo. Ele possivelmente percebe que os dois não são tão diferentes. Peguemos alguns dos pacientes atendidos por ela ,  o problema da doente que sente calor e precisa tirar a roupa , é tão diferente do furor sexual que Verônica sente para se aliviar? O problema do doente catatônico por exemplo , é tão diferente da situação do jantar de Verônica com seu namorado, em que os dois não consegue dizer nada? O silêncio muitas vezes é o que há de mais sincero , é a história de todos nós,  nossas lacunas , há muito mais espaço vazio do que preenchido no universo.


Na segunda parte do filme , o silêncio se torna muito importante, tanto que barulhos como canetas, papéis ou qualquer background  sonoro ganham um peso muito grande. Não há música de tensão para esses momentos. Basta por exemplo a presença intimidante de um médico superior folheando seus papéis ou  os barulhos de trânsito enquanto Verônica recebe a notícia de que seu pai está com uma doença terminal. Esse burburinho externo, essa vida que continua independente da nossa , essa “ tarde que passa mansa despreocupada com a  gente” é um movimento sobre o qual não temos controle e que por mais que fiquemos em silêncio ou morramos, ele continua.
Numa outra cena, Verônica, penteia os cabelos do pai ao som de uma música instrumental , um plácido piano. Esse momento de companheirismo e suavidade é cortado violentamente  quando a edição de som interrompe a música e castiga na altura dos barulhos de trânsito,  na transição para a cena seguinte . Verônica tem que oscilar entre momentos tão plenos e o caos. Não há  fade in, fade out , não há previsão na vida, ela simplesmente acontece.
Então Verônica nos mostra seu suposto final feliz , que me parece um pouco trágico: todos nus insinuando uma orgia na praia e se jogando no mar para boiarem. Lógico que o sexo é muito importante para a personagem e o filme trabalha muito bem com isso quando filma as cenas quase que roçando a  pele dos atores e a edição de som enfatiza o volume , privilegiando gemidos altos e sussurros, o que nos faz quase estar na cama com eles. Um final que escancara o desejo sexual é sincero , derruba tabus que porventura ainda existam sobre a intensidade do desejo sexual feminino , e Freud ficaria orgulhoso. Mas por outro lado será que se lançar de vez  nesse desejo não seria o caminho para ficar num caminho contrário à civilização, no ventre quente de um mar morno, mas alheio a qualquer tipo de contribuição social? Será que Verônica existiria se  fosse só desejo? Poucos minutos antes do filme acabar , ela diz que cansou de tanto sofrer com um semblante muito triste. Somos induzidos a pensar que o fim será algo como um suicídio , mas de certa forma esse "tentar sonhar mais com a  vida" é uma forma de suicídio:  mata a realidade pra viver no sonho. Para que Verônica exista , precisa passar por sucessivas crises ou mortes, e como diz Vinicius de Morais na letra de Tempo de amor: "Bem melhor seria poder viver em paz, sem ter que sofrer , sem ter que chorar, sem ter que querer, sem ter que se dar, mas tem que sofrer, tem que querer, tem que chorar pra poder amar(...) Não existe coisa mais triste que ter paz (...) o tempo de amor é tempo de dor, o tempo de paz não faz nem desfaz ". E amanhã , todos colocarão suas roupas , sairão do mar morno e representarão seus papéis de coadjuvantes, antagonistas, protagonistas e tudo mais. Era uma vez um filme que começasse em nossas cabeças e que, se tudo desse certo, terminaria fora delas.

PARA OUVIR ALGUMAS:







quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Moonrise Kingdom - A trilha sonora


(COM SPOILERS)


Só estamos apaixonados, queremos ficar juntos, o que há de errado nisso?” (Suzy Bishop, para a mãe)

Traçando um percurso divertido e solar , o diretor Wes Anderson nos apresenta um belo filme sobre a descoberta do primeiro amor e o embate dessa sensação com os limites da realidade. A história se passa em 1965, na ilha de New Panzance , onde um grupo de escoteiros encontram-se acampados. É numa  situação inusitada durante a apresentação da peça "Arca de Noé" que o escoteiro Sam Shakusky conhece Suzy Bishop. Desde então os dois,  que se sentiam deslocados , começam a  trocar correspondências e resolvem fugir juntos . Daí começam as buscas do oficial Sharp (Bruce Willis) para localizar as “crianças-problema”.
As cenas iniciais ( uma aula de cinema) apresentam a casa dos Bishop, uma família tradicional que vive na ilha. Uma das crianças põe o toca-discos pra tocar “The Young Person's Guide to the Orchestra, Op. 34”, obra composta por Benjamin Britten para educação musical infantil , com base em temas musicais de Purcell. Então se inicia a brincadeira: a apresentação dos personagens do filme coincide com a dos instrumentos da orquestra da música de Britten , uma analogia que funciona bastante , dando coesão e despertando  interesse.
Quando Suzy Bishop aparece pela primeira vez , lendo um livro na janela, a música do toca-discos atinge seu ápice , com a orquestra cheia, sinalizando a importância dessa personagem . O fato dela estar lendo um livro de aventura e a música ter esse  mesmo clima, sugere o desejo da personagem se aventurar. Quando Suzy fecha o livro e abre a janela , a música se torna incidental! Ou seja , a música do toca-discos deixa de ter aquele ruído característico do aparelho e cresce  mais limpa e envolvente , mais “real” , antecipando que  a menina vai viver uma aventura fora dos livros, para além daquela janela. Suzy posiciona seu binóculo e dá um zoom no “espectador” como se estivesse desvendando algo que está dentro de nós, quem sabe a juventude , a alegria , a sede de aventuras que não encontra muito eco no cotidiano.


Adultos geralmente se tornam vigilantes de um sistema de leis. Alguns centros morais aparecem claramente no filme: a família (pais dos Bishop) , a polícia (o vigia solitário e infeliz) e o juízo (representado pela assistente social ). Com exceção do chefe dos escoteiros (Edward Norton) , que parece transitar entre o mundo adulto e o infantil , em geral amadurecer traz consigo a redução da existência a uma visão de mundo cristalizada. Ser um indivíduo respeitado é ter opinião formada , convicção. Uma vez refém de seu ponto de vista  ,  o adulto se torna limitado e às vezes é cego às exceções. Tanto o símbolo do binóculo,  como o esmiuçamento das partes  da orquestra , exploram a  idéia de dar um zoom nos fragmentos, de olhar os pedaços que em geral não se vê por que se acostumou a perceber coisas como um todo. Nesse sentido o olhar da criança é desconstrutor , não se importa com o valor da família ou com o  que seria certo, simplesmente quer seguir o fluxo da vontade . Isso fica muito bem caracterizado na utilização de  fortes tons amarelos onde predominam as crianças e nos tons escuros onde há presença dos adultos, sobretudo da assistente social, uma pessoa sem nome, quase que um braço de uma instituição, com um azul gélido, que  num dado momento chega a contaminar  a palheta de cores do filme .
A trilha sonora acompanha essa lógica quando opta por retratar sem música as cenas com foco nos adultos. O máximo que ouvimos é alguma canção country de Hank Williams como "Long Gone Lonesome Blues , tocando no rádio chiado , funcionando como um índice de decadência. Já o plano sonoro das crianças é repleto de temas de aventura e corais infantis, reiterando o encantamento da visão de mundo dos pequenos.
O humor é um elemento importante na história , sobretudo por causa dos personagens desajeitados e caricatos como o escoteiro-chefe Ward , o narrador e o irmão Bishop metido a  valentão. Uma das faixas que realça o tom humorístico , composta especialmente para o filme por Mark Mothersbaugh é “Camp Ivanhoe Cadence Medley”. Quase toda percutida, com exceção da introdução em trompete, ela confere um clima militaresco irônico à apresentação do acampamento dos escoteiros. Podemos ouvi-la durante as inspeções do escoteiro-chefe Ward e em alguns momentos de ação dos escoteiros. Interessante que a idéia de desajuste pode ser apreendida  também nas canções de Hank Willians , quando ele oscila  entre falsete e voz de cabeça , ou na introdução de "Les temps de l’ amour" , quando a guitarra elétrica faz frases  com um efeito oscilatório num estilo meio "música de velho oeste".

O responsável pela maior parte da  trilha original  foi Alexandre Desplat , com uma obra de 7 partes: “The Heroic Weather conditions of the universe” . São músicas que acompanham Sam e Suzy , misturando aventura , um quê de infância , às vezes chegando ao épico com os coros. A idéia básica é um tema  de 4 notas  e a partir daí surgem diversas variações , com a entrada sucessiva de banjos, ukeleles, flautas , sinos etc. Dessa maneira ,   formam um verdadeiro banco sonoro maleável,  um prato cheio para  o pessoal da edição encaixar onde achar melhor. Há diversas nuances em cada faixa, mas em todas está preservado o clima hipnotizante , como se adentrasse uma realidade paralela, típica de quem está apaixonado. Na parte 7, Desplat  enumera os instrumentos de sua trilha, narrados por uma voz de criança. Essa faixa acompanha os créditos finais  e faz uma ligação direta com a abertura do filme, onde o toca-discos apresentava as partes de uma orquestra.
Faz parte da trilha também o movimento Voliére (aviário) da famosa suíte Carnival of the Animals , composta por Saint-Saëns em 1886. O trabalho, muito utilizado em educação musical, tem peças de  sucesso, como “O cisne” e “Aquarium”. No filme, a escolha de  “Voliére”  está em sintonia sobretudo com a  bela cena em que Sam conhece Suzy no camarim do teatro , onde a menina vai encenar um pássaro na arca de Noé. “Voliére” toca quando eles chegam à praia deserta durante a fuga , sublinhando com o movimento das flautas , a sensação de liberdade daquele momento breve em que os dois puderam voar em certo sentido.
Enquanto faziam uma lista de pertences que haviam levado para o acampamento, Suzy mostra para Sam seu disco favorito, da cantora francesa Françoise Hardy. É ao som da faixa “Les Temps de L’amour “que os dois vão dançar na beira da praia, numa cena que insinua as descobertas sexuais. A voz sensual de Françoise e o ar retrô , fornece um charme especial àquele momento, além de contextualizar o filme nos anos 60. Há uma via de mão dupla: a cena dá mais potência à música e vice–versa. Tanto que essa canção costuma ser o hit de quem curtiu o filme. Ela  consegue marcar muito bem,  como diz a letra , esse tempo do amor que é longo e curto, dura pra sempre e que  lembramos.  

Em nenhum momento da trilha há passagens agressivas . As músicas seguem um fluxo doce e divertido. Até na parte mais dramática da história , quando desaba a  tempestade, o que ouvimos é um brando coral de igreja. Talvez porque para as crianças as coisas não têm tanto peso , são só etapas de uma  grande aventura.
E o que há de errado em amar , afinal? É que amar é o grito do desejo, está fora do plano racional e coloca em xeque a estabilidade das coisas. Ninguém, entende os amantes a não ser eles mesmos, vivem uma realidade paralela, fora do mundo palpável, querem seu éden particular, seu "Moonrise Kingdom". Olhando de fora isso é ingênuo. Mas é esse tempo do amor que o espectador reconhece em algum buraco dentro de si, e parece que alguma coisa que já tinha se perdido com o tempo ainda está viva.
E se nessa busca por resgatar “nossas crianças” , nós,  seres de cabeça de madeira, imóveis , amando em silêncio como bonecos numa loja de antiquários ( trecho da letra de “Kaw-liga” de Hank Willians) descobrimos o quanto a cultura e o tempo nos tornou frios  "assistentes  sociais" ? O quanto de Sam e Suzy ainda nos resta?
Na cena final os dois amantes parecem entender que esse paraíso não pode ser vivido plenamente e o Moonrise Kingdom migra da praia para a arte, na tela de um quadro. O espectador faz um movimento semelhante, vivendo essa história na tela do cinema. O amor continua , mas com os limites do possível, incluindo fugas pela janela e encontros furtivos. E no final  a música de  coral dá o tom de pureza desse amor que precisou se adaptar, mas preservou ainda o encantamento. Poucas vezes vi pessoas saírem do cinema com sorrisos tão sinceros.


PARA OUVIR ALGUMAS: