quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Moonrise Kingdom - A trilha sonora


(COM SPOILERS)


Só estamos apaixonados, queremos ficar juntos, o que há de errado nisso?” (Suzy Bishop, para a mãe)

Traçando um percurso divertido e solar , o diretor Wes Anderson nos apresenta um belo filme sobre a descoberta do primeiro amor e o embate dessa sensação com os limites da realidade. A história se passa em 1965, na ilha de New Panzance , onde um grupo de escoteiros encontram-se acampados. É numa  situação inusitada durante a apresentação da peça "Arca de Noé" que o escoteiro Sam Shakusky conhece Suzy Bishop. Desde então os dois,  que se sentiam deslocados , começam a  trocar correspondências e resolvem fugir juntos . Daí começam as buscas do oficial Sharp (Bruce Willis) para localizar as “crianças-problema”.
As cenas iniciais ( uma aula de cinema) apresentam a casa dos Bishop, uma família tradicional que vive na ilha. Uma das crianças põe o toca-discos pra tocar “The Young Person's Guide to the Orchestra, Op. 34”, obra composta por Benjamin Britten para educação musical infantil , com base em temas musicais de Purcell. Então se inicia a brincadeira: a apresentação dos personagens do filme coincide com a dos instrumentos da orquestra da música de Britten , uma analogia que funciona bastante , dando coesão e despertando  interesse.
Quando Suzy Bishop aparece pela primeira vez , lendo um livro na janela, a música do toca-discos atinge seu ápice , com a orquestra cheia, sinalizando a importância dessa personagem . O fato dela estar lendo um livro de aventura e a música ter esse  mesmo clima, sugere o desejo da personagem se aventurar. Quando Suzy fecha o livro e abre a janela , a música se torna incidental! Ou seja , a música do toca-discos deixa de ter aquele ruído característico do aparelho e cresce  mais limpa e envolvente , mais “real” , antecipando que  a menina vai viver uma aventura fora dos livros, para além daquela janela. Suzy posiciona seu binóculo e dá um zoom no “espectador” como se estivesse desvendando algo que está dentro de nós, quem sabe a juventude , a alegria , a sede de aventuras que não encontra muito eco no cotidiano.


Adultos geralmente se tornam vigilantes de um sistema de leis. Alguns centros morais aparecem claramente no filme: a família (pais dos Bishop) , a polícia (o vigia solitário e infeliz) e o juízo (representado pela assistente social ). Com exceção do chefe dos escoteiros (Edward Norton) , que parece transitar entre o mundo adulto e o infantil , em geral amadurecer traz consigo a redução da existência a uma visão de mundo cristalizada. Ser um indivíduo respeitado é ter opinião formada , convicção. Uma vez refém de seu ponto de vista  ,  o adulto se torna limitado e às vezes é cego às exceções. Tanto o símbolo do binóculo,  como o esmiuçamento das partes  da orquestra , exploram a  idéia de dar um zoom nos fragmentos, de olhar os pedaços que em geral não se vê por que se acostumou a perceber coisas como um todo. Nesse sentido o olhar da criança é desconstrutor , não se importa com o valor da família ou com o  que seria certo, simplesmente quer seguir o fluxo da vontade . Isso fica muito bem caracterizado na utilização de  fortes tons amarelos onde predominam as crianças e nos tons escuros onde há presença dos adultos, sobretudo da assistente social, uma pessoa sem nome, quase que um braço de uma instituição, com um azul gélido, que  num dado momento chega a contaminar  a palheta de cores do filme .
A trilha sonora acompanha essa lógica quando opta por retratar sem música as cenas com foco nos adultos. O máximo que ouvimos é alguma canção country de Hank Williams como "Long Gone Lonesome Blues , tocando no rádio chiado , funcionando como um índice de decadência. Já o plano sonoro das crianças é repleto de temas de aventura e corais infantis, reiterando o encantamento da visão de mundo dos pequenos.
O humor é um elemento importante na história , sobretudo por causa dos personagens desajeitados e caricatos como o escoteiro-chefe Ward , o narrador e o irmão Bishop metido a  valentão. Uma das faixas que realça o tom humorístico , composta especialmente para o filme por Mark Mothersbaugh é “Camp Ivanhoe Cadence Medley”. Quase toda percutida, com exceção da introdução em trompete, ela confere um clima militaresco irônico à apresentação do acampamento dos escoteiros. Podemos ouvi-la durante as inspeções do escoteiro-chefe Ward e em alguns momentos de ação dos escoteiros. Interessante que a idéia de desajuste pode ser apreendida  também nas canções de Hank Willians , quando ele oscila  entre falsete e voz de cabeça , ou na introdução de "Les temps de l’ amour" , quando a guitarra elétrica faz frases  com um efeito oscilatório num estilo meio "música de velho oeste".

O responsável pela maior parte da  trilha original  foi Alexandre Desplat , com uma obra de 7 partes: “The Heroic Weather conditions of the universe” . São músicas que acompanham Sam e Suzy , misturando aventura , um quê de infância , às vezes chegando ao épico com os coros. A idéia básica é um tema  de 4 notas  e a partir daí surgem diversas variações , com a entrada sucessiva de banjos, ukeleles, flautas , sinos etc. Dessa maneira ,   formam um verdadeiro banco sonoro maleável,  um prato cheio para  o pessoal da edição encaixar onde achar melhor. Há diversas nuances em cada faixa, mas em todas está preservado o clima hipnotizante , como se adentrasse uma realidade paralela, típica de quem está apaixonado. Na parte 7, Desplat  enumera os instrumentos de sua trilha, narrados por uma voz de criança. Essa faixa acompanha os créditos finais  e faz uma ligação direta com a abertura do filme, onde o toca-discos apresentava as partes de uma orquestra.
Faz parte da trilha também o movimento Voliére (aviário) da famosa suíte Carnival of the Animals , composta por Saint-Saëns em 1886. O trabalho, muito utilizado em educação musical, tem peças de  sucesso, como “O cisne” e “Aquarium”. No filme, a escolha de  “Voliére”  está em sintonia sobretudo com a  bela cena em que Sam conhece Suzy no camarim do teatro , onde a menina vai encenar um pássaro na arca de Noé. “Voliére” toca quando eles chegam à praia deserta durante a fuga , sublinhando com o movimento das flautas , a sensação de liberdade daquele momento breve em que os dois puderam voar em certo sentido.
Enquanto faziam uma lista de pertences que haviam levado para o acampamento, Suzy mostra para Sam seu disco favorito, da cantora francesa Françoise Hardy. É ao som da faixa “Les Temps de L’amour “que os dois vão dançar na beira da praia, numa cena que insinua as descobertas sexuais. A voz sensual de Françoise e o ar retrô , fornece um charme especial àquele momento, além de contextualizar o filme nos anos 60. Há uma via de mão dupla: a cena dá mais potência à música e vice–versa. Tanto que essa canção costuma ser o hit de quem curtiu o filme. Ela  consegue marcar muito bem,  como diz a letra , esse tempo do amor que é longo e curto, dura pra sempre e que  lembramos.  

Em nenhum momento da trilha há passagens agressivas . As músicas seguem um fluxo doce e divertido. Até na parte mais dramática da história , quando desaba a  tempestade, o que ouvimos é um brando coral de igreja. Talvez porque para as crianças as coisas não têm tanto peso , são só etapas de uma  grande aventura.
E o que há de errado em amar , afinal? É que amar é o grito do desejo, está fora do plano racional e coloca em xeque a estabilidade das coisas. Ninguém, entende os amantes a não ser eles mesmos, vivem uma realidade paralela, fora do mundo palpável, querem seu éden particular, seu "Moonrise Kingdom". Olhando de fora isso é ingênuo. Mas é esse tempo do amor que o espectador reconhece em algum buraco dentro de si, e parece que alguma coisa que já tinha se perdido com o tempo ainda está viva.
E se nessa busca por resgatar “nossas crianças” , nós,  seres de cabeça de madeira, imóveis , amando em silêncio como bonecos numa loja de antiquários ( trecho da letra de “Kaw-liga” de Hank Willians) descobrimos o quanto a cultura e o tempo nos tornou frios  "assistentes  sociais" ? O quanto de Sam e Suzy ainda nos resta?
Na cena final os dois amantes parecem entender que esse paraíso não pode ser vivido plenamente e o Moonrise Kingdom migra da praia para a arte, na tela de um quadro. O espectador faz um movimento semelhante, vivendo essa história na tela do cinema. O amor continua , mas com os limites do possível, incluindo fugas pela janela e encontros furtivos. E no final  a música de  coral dá o tom de pureza desse amor que precisou se adaptar, mas preservou ainda o encantamento. Poucas vezes vi pessoas saírem do cinema com sorrisos tão sinceros.


PARA OUVIR ALGUMAS: